“O Caminho do Tarô”, por Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa — uma resenha crítica.

Fortuna Arcana
5 min readJul 8, 2021

(Texto originalmente publicado no instagram Fortuna Arcana)

Para que a minha leitura a respeito do livro “O Caminho do Tarot”, publicado no Brasil pelo selo Chave em 2016, seja compreendida, acho importante fazer alguma contextualização. Primeiramente, é necessário falar a respeito do Tarô de Marselha.

Jodorowsky defende que possui o propósito (e, segundo ele, possui o êxito) de “restaurar o Tarô de Marselha”. Contatado por Philippe Camoin, um descendente da família que produzia o baralho conhecido como “Nicolas Conver”, sendo o baralho Marselhês mais popular (e um dos mais produzidos pelas editoras brasileiras). De modo que é descrito como um tanto milagroso, Jodorowsky propôs a ele a reconstrução do Tarô de Marselha com base em baralhos pertencentes à família e também em pranchas de impressão. Jodorowsky possuía um baralho de Paul Marteau — um de seus mentores — , uma réplica do baralho Besançon, do século XIX, provavelmente publicado pela casa Grimaud. A crítica de Jodorowsky, tanto ao baralho de Nicolas Conver quanto ao Besançon, é que ambos são “cópias”, feitas em máquinas de impressão. A dita restauração do baralho tinha como objetivo chegar ao “Marselha original”.

O próprio autor escreve, na introdução: “depois de um ano de pesquisas, nós nos demos conta da imensidão da tarefa que ainda tínhamos pela frente. Não se tratava de trocar alguns detalhes, nem de clarear algumas poucas linhas, era necessário restaurar o Tarot inteiro, devolvendo-lhe suas cores originais, pintadas manualmente, e os desenhos que os sucessivos copistas acabaram apagando. […] Os exemplares do século XVIII são cópias dos anteriores, e portanto não podíamos aceitar que um Tarot do século XVIII fosse o original. Era bem possível que a versão de Nicolas Conver de 1760 contivesse erros e omissões. Se no início os desenhos eram pintados manualmente, o número de cores foi limitado quando as máquinas industriais apareceram nas gráficas do século XIX. […] Aqueles que não eram iniciados simplificaram ao máximo os símbolos e os que copiaram acrescentaram outros erros a esses erros.”
A proposta de Jodorowsky me parece vir de um local onde há certa inconsistência a respeito da História do Tarô: há a suposição de um baralho original, feito por “iniciados”. É extremamente importante pensarmos que a história do Tarô não é tão linear, sendo que o que hoje conhecemos como “Tarô de Marselha” é, na realidade, um padrão imagético que tem suas origens em diversos baralhos criados na Lombardia, norte da Itália. Esse padrão passou por diversas transformações ao longo dos séculos XIV e XV, mudando cores e formatos a depender do autor e país onde era produzido, até chegar a uma consistência maior nos séculos XVI e XVII, quando realmente “nasce” o Tarô de Marselha. Este nascimento está muito ligado às tecnologias de xilogravura, litogravura e cinzel. Jodorowsky diz ter encontrado, no México, um “Tarô de Marselha completamente pintado à mão”, o que me faz pensar em duas questões: ou esta afirmação não é verdadeira, ou o baralho em posse do autor não é bem um Marselha, mas sim um de seus influenciadores. É importante ressaltar, por exemplo, a respeito das cores, que estas mudam de acordo com a tipologia do baralho (existem os Marselhas de tipo 1, os mais antigos; e os de tipo 2, dos quais entram o padrão Conver), e me surpreende que Jodorowsky não cite estas tipologias ou mesmo o baralho de Jean Noblet, o baralho de Marselha mais antigo do mundo.
Além do mais, os baralhos de padrão Marselhês já nascem em um período em que a produção através de técnicas de impressão como cinzel, litogravura e xilogravura já eram bastante populares dentro da produção de cartas, o que me faz desconfiar bastante deste “baralho de Marselha pintado à mão”. Não existe um baralho Marselhês “original”, e muito menos um “puro, iniciático”, visto que, até o século XIX, os baralhos eram feitos quase que exclusivamente para fins lúdicos. Marselha é construção, herança de séculos de evolução iconográfica e histórica.

LINGUAGEM DOS PÁSSAROS

A chamada linguagem dos pássaros é uma forma de leitura constituída por um viés poético. O maior nome, atualmente, desta escola (por escola, digo uma grupo de pessoas com pensamentos semelhantes, não estou falando de institucionalizações de pensamento), é Enrique Enriquez, um poeta de Nova York. O autor Dale Pendell também escreveu sobre a linguagem dos pássaros no livro “The Language of the Birds: some notes on chance and divination”, de 2009. Uma leitura excepcional. Há, ainda, Tchalaï Unger, uma das mentoras de Jodorowsky, e seu livro “El Tarot, ¿Por qué?, ¿Cómo? ¿Hasta dónde?”.

Na linguagem dos pássaros, há um convite para que o(a) cartomante (ou oraculista) vá além das molduras dentro dos Arcanos/imagens. Em uma leitura, por exemplo, em que haja uma Rainha de Espadas e, do lado, um Ás de Espadas, poderia significar que a Rainha entrega a sua coroa para a espada, percebendo que o poder não vem dela, mas de seu instrumento. Uma flor pode se transformar em um Arcano Maior, etc, as possibilidades são muitas. Este tipo de leitura não é exclusivo da Linguagem dos Pássaros, visto que é um pensamento que tem como base a cartomancia clássica. A própria teoria dos encontros, sobre a qual falo muito em meus cursos, é um tanto quanto similar. Olhar para as posições dos Arcanos, o que as cartas fazem, etc, é extremamente importante. O grande problema, em Jodorowsky, para mim, é quando a leitura mais poética quebra determinadas tradições e, até mesmo, raciocínios.

Além da problemática histórica encontrada no livro, há uma extrapolação da leitura imagética, em minha opinião. Liberdade de leitura é importante, mas eu sou o tipo de tarólogo que possui uma visão bem clara: liberdade nenhuma, recurso linguístico-interpretativo nenhum, deve ir além do que a carta diz. Quando se estuda o simbolismo dos Arcanos, algumas mensagens ficam bem claras. A Torre nunca foi um arcano que mostrasse situações felizes, então, no momento em que há alguém dizendo que ela pode significar prosperidade, há uma quebra para além da carta. Isso também pode levar a leitura para um espaço além de um Arcano, e pode acontecer alguma leitura onde os limites chegam na próxima carta: como por exemplo uma pessoa que começa a ler o Mago e acaba falando em reflexão e silêncio, atributos clássicos da Papisa.
Não são poucas as vezes em que Jodorowsky quebra com a tradição simbólica, e não, não estou falando de um jeito inovador e que traga uma brisa fresca para o mundo interpretativo, mas sim de uma quebra de determinados padrões de forma, ao meu ver, agressiva. Muita poética, pouca interpretação tarológica. Para Jodorowksy, por exemplo, as figuras que caem da Torre são, na realidade, os diabretes contidos no Arcano XV, o Diabo, que, agora, realizaram sua ascensão, e estão voando em alegria. Jodorowsky chega a dizer que na Torre não há destruição, mas sim uma transformação espiritual. Muito da visão de Jodorowsky sobre o Tarô está ligado à Psicomagia, método criado por ele, o que acaba misturando muita coisa. Em um livro que propõe uma restauração de um Marselha original, ter uma leitura que se baseie tanto em um próprio método me soa um tanto quanto estranho.

Dito isso, não é um livro que eu descarte. Muitas passagens são boas, mas é preciso ter um filtro muito grande, uma carga de leitura tarológica consistente, para que se saiba o que extrair. Enquanto leitura iniciante, eu não recomendo, visto que a pessoa que nunca leu nada sobre Tarô tende a fixar na mente a primeira impressão, e eu não acho que as inconsistências históricas e simbólicas propostas pelo autor sejam as mais ideias.

Julio Soares

--

--